As Sete Voltas
Ditoso o homem que se compadece e empresta.
(SALMOS, cap. 112, v. 5)
Joãozinho — disse José Batista —, seu pai não ‘stá podendo trabalhar, e o único meio que temos é vender a lenha que tá na serra. E é ‘ocê que vai fazer isso pra mim. ‘Ocê mais o Antônio Carreiro, que já combinei tudo com ele. O carro, eu vou dar um jeito de apanhar um.
José, então, procurou Antônio da Mota, conversou e expôs suas dificuldades, e o homem, mesmo não o conhecendo, confiou-lhe um empréstimo, com o qual comprou um carro e oito bois, os melhores que pôde encontrar. Os bois foram distribuídos com mestria por quem conhecia muito bem do ofício: na guia, Lembrado e Castelo. O primeiro não era grande coisa, um boi amarelo, meio fraco, mas Castelo tirava a diferença e equilibrava a parelha: um boi vermelho retinto, que, embora fosse feio de corpo, barrigudo, de chifre baixo, era extremamente forte e inteligente. Sete de Ouros e Brinquedo, no pé de guia. No coice, Bem-feito, um boi vermelho, e Meia Lua, inteirinho chumbado. No pé de coice, Almirante e Marinheiro, os dois também vermelhos, ambos muito possantes: pescoço curto, cangote curto e reforçado.
José Batista passou a Joãozinho as instruções da difícil empreitada: — Meu filho, o Antônio é carreiro experiente, mas quero qu’ocê preste atenção: comprei os bois de gente de confiança, de gente que sabe tratar animal com jeito, sem judiação. Estudei e experimentei os bois, são disciplinados, obedientes, e dispus eles no modo apropriado de descer terreno inclinado, sustentando grande peso. Mas, de qualquer modo, muito cuidado com a Volta Brava, que naquele trecho já teve muito acidente. Compadre Alberto mesmo perdeu lá o Despacho, boi de primeira, conforme já lhe contei. Assim, um pouco antes das pedras, ‘ocês me solta o Almirante e o Marinheiro e bota os dois na corda, que são eles que vão segurar todo o peso do carro; caso contrário, ocês despencam pedreira abaixo.
Na verdade, José Batista cuidava de prevenir o menino dos perigos da viagem. A subida da Serra das Águas se fazia por um caminho antigo, que mais tarde foi abandonado. Uma estradinha carreira chamada Sete Voltas, que descia contornando as encostas e saía no Quinzinho Borges, no morro do bairro da Vargem, nas proximidades do Jacu. E havia um trecho de pedra — uma enorme laje em declive, cheia de baques, que se projetava para uma ribanceira, lugar de muito risco para um carro de bois — a Volta Brava. Nesse ponto, botavam-se os bois de corda: retiravam-se os bois do pé de coice e esses eram postos atrás para ir segurando o carro, refreando as rodas, por meio de um correião de couro cru ligado a uma argola presa à retaguarda do carro de bois.
O menino, então com nove anos, saiu da escola para, em companhia de Antônio Carreiro, apelidado de Facão, carrear a lenha que estava lá na crista da Serra das Águas. Enquanto José convalesceu, Joãozinho e o carreiro fizeram duas viagens por dia, duas léguas de distância, com o carro sobrelotado, transportando as achas de lenha pelas Sete Voltas, caminho traiçoeiro que impunha respeito a todo viajante.
Seu Antônio da Mota e Zé Batista Guimarães, meu avô, personagens da história acima
(*) Esta narrativa faz parte do livro Abigal [Mediunidade e redenção], de autoria de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a série MEMÓRIAS DE ÁGUINHAS. Veja acima o tópico Livros à Venda.