Este post sobre o Hotel Imperial inicia a Série Hotéis de Aguinhas, cujo índice vai ao pé desta página, neste link.
Em o Menino-Serelepe* conto várias passagens de minha infância vividas no sobradão do Pai Véio, meu avô paterno. O velho sobrado se situa(va) ao lado do Hotel América e em frente ao Hotel Imperial. O América não existe mais, o Imperial virou condomínio, mas o sobradão ainda continua lá...
Esse local foi um ponto privilegiado de amigos e de brincadeiras, e até hoje tenho vivas as imagens da turma, das lutas e jogos de bola com os veranistas, e a aventura - certamente única - de brincar escondido no túnel do Rio Mumbuca e nas dependências internas do Hotel Imperial.
Aqui vai um resumo dessas memórias, ilustradas por fotos.
Eis como narro o sobradão e a brincadeira dos trolinhos de cabos de vassoura:
O sobradão do Pai Véio e os trolinhos de cabos de vassoura
Na minha infância, vó Margarida morava com a tia Irene mais tio Darci mais os filhos num sobrado enorme e já muito danificado, que conhecera dias melhores em século passado, situado em frente ao Hotel Imperial, e por esse tempo a família ocupava os três andares da metade esquerda do edifício. Nessa casa, nasceram todos os filhos da tia Irene: Beto, Dedei, Randolfo, Darcirene, Elisângela, e nela também se criou o Marcelino, filho adotivo dos meus avós. O andar de cima do sobradão era alcançado por uma enorme e empinada escada de madeira, da qual a criançada, pra descer, nunca usava os degraus: escorregava-se pela peça que arrematava os cantos da escada, com as mãos agarradas nos dilatados corrimões.
E foi depois de muito negociar, com intercessão do pai, do Pai Véio, da vó Cema, que mãe concedeu que eu, já morando na cidade, pudesse ir sozinho à casa da vó Margarida brincar com os primos da banda de lá. E ali formei nova turma de amigos: Beto, Ike, Carzalberto, Marquinho, Toninho, Zé Maria, Dimas e mais umas meninas irmãs desses meninos, além da Regina, filha da dona Zuza. E o cenário das brincadeiras e das artes se expandiu. Pra resumir e pra contar só o diferente, se brincava de trolinho de cabo de vassoura que a gente fabricava pra descer, a jato, o morro da Paradinha Melo. Os trolinhos eram dois cabos de vassouras postos em paralelo, com a parte de baixo untada de sebo de vaca, travados pelo assento e pelo apoio de pé, feitos de madeira. Na lateral do assento, preso por um prego grande, um toco de madeira revestido de pneu, formando uma manivela, que quando acionada tocava o chão, frenando os trolinhos. A pista: o inclinado passeio em frente ao Hotel Imperial, que começava na Parada Melo e terminava fronteiro à porta do sobradão da vó. O trolinho era montado de forma a se encaixar perfeitamente na greta do passeio, que era feito de ladrinhos lá da fábrica do seu Tonico Fernandes.
Do Posto Gregatti, que ficava logo abaixo do sobradão, vinha o óleo para lubrificar as fendas da calçada, que antes eram lavradas, alargadas e aparadas por meio de uma ferramenta improvisada, feita de cinta metálica, do tipo com que antigamente se lacravam os caixotes de mercadorias. E aí se organizavam disputas e campeonatos ferrados. Arranhões, escoriações, a toda hora aconteciam; saía-se, às vezes, meio esfrangalhado, mas de quebraduras, não me lembro.
Sobradão do Pai Véio, em frente ao Hotel Imperial. Na foto, pode-se ver o alpendre do sobradão e a descida da Parada Melo (passeio do centro), onde brincávamos de trolinhos de cabos de vassoura.
Outras brincadeiras e o Hotel Imperial
Noutro trecho do livro, falo de mais brincadeiras e das aventuras no Hotel Imperial:
Por essa época se deu o fechamento do Hotel Imperial, que viria a ser transformado num condomínio, e o colossal prédio, por uns bons tempos, ficou sem receber ninguém e praticamente deserto, só alguns funcionários trabalhando na manutenção. E nessa instalação gigantesca do Hotel Imperial é que se dava uma das nossas mais fantásticas brincadeiras — o pique-esconde. Iniciávamos pelas cercas de ciprestes próximas ao sobradão, depois saltávamos a mureta do hotel ou trepávamos à laje que dava ao primeiro andar do edifício, entrávamos pelos salões, subíamos pelas escadarias, corríamos pelos extensos corredores. E isso, muitas vezes, à noite. Poucas crianças tiveram espaço tão especial pra brincar de pique-esconde quanto essa turma da rua da casa da vó Margarida. E a brincadeira ia mais longe, pois fazíamos também umas “excursões” que ficaram famosas. Escondidos, andávamos por todos os ambientes do hotel. Penetrávamos no Rio Mumbuca nos fundos do Posto Gregatti, subíamos o rio por sob o túnel e saíamos do outro lado, escalávamos o paredão de tijolos para acessar o antigo cinema do hotel e dali íamos “excursionando”, começando pelo próprio cinema, e depois pelos salões de jogos — que Aguinhas foi cidade onde a jogatina reinou até os anos 40 — pelos jardins, pelas quadras, pelo terreno da caldeira, pela piscina, pelos jardins internos. Depois escalávamos o barranco que dava pros lados da casa do Copide, cruzávamos a cerca-viva de cana-da-índia, saltávamos no leito da linha do trem, percorríamos um trecho até a Parada Melo e por ela reentrávamos no Hotel Imperial, que ali havia um acesso para os passageiros que chegavam de trem. Mas por esse tempo, já trem não havia mais.
Nesse túnel do Rio Mumbuca a turma chegou a manter um esconderijo, feito de objetos duramente catados ao fundo do rio: restos de concreto, tijolos, pedras, que, acumulados, formaram uma elevação na qual durante muito tempo brincamos e pescamos mandis, cascudos e lambaris. Bons tempos aqueles, pois o rio Mumbuca não era ainda tão poluído quanto atualmente.
Na circunvizinhança do Hotel Imperial, nos tempos em que esse assim funcionou, a turma da rua também brincava de coisas mais amenas, como pescar no laguinho do Parque Novo, rodar arquinho (aproveitado de recortes de latões de leite da fábrica do Biaso), bulir com o papagaio da dona Alzira, fazer desenhos de carvão nos muros, bater pelada contra os cariocas, jogar pingue-pongue e bolinha de gude. Ah, e havia também uma “coleção” que inventamos — a de automóveis rabos-de-peixe que consistia no seguinte: cada um que avistasse primeiro os Cadillac, os Oldsmobile, os Studbaker, os Buick, os Ford, enfim, qualquer daqueles vistosos carros de pneus de banda branca dos anos 50 e 60, punha-os na sua “coleção” — e ninguém podia “roubar”. E ficava à frente do jogo quem mantivesse “coleção” mais exuberante, que variava ao sabor das idas e vindas dos veranistas...
Automóveis rabos-de-peixe estacionados no Hotel América, que eram objeto de nossa "coleção"...
O Hotel Imperial visto dos fundos, e a Parada Melo vista de frente
Balneário que funcionava nas dependências internas do Hotel Imperial. Ao fundo, a chaminé da caldeira
Fundos do hotel, visto da Praça da Liberdade (fonte luminosa)
Vista da piscina do Imperial
Os luxuosos corredores internos do Hotel Imperial
Veranistas nos jardins internos do Hotel Imperial
Boliche - com a transformação do hotel em condomínio, parte do Imperial foi desativada, como o cinema. E nesse espaço surgiram o boliche e a boite Tic Tac.
(*) Esta narrativa faz parte do livro Menino-Serelepe - Um antigo menino levado contando vantagem, uma ficção baseada em fatos reais da vida do autor, numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, nos anos 1960.
O livro é de autoria de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a série MEMÓRIAS DE ÁGUINHAS. Veja acima o tópico Livros à Venda.
http://floradaserra.blogspot.com.br/2012/03/turismo-nostalgia-lambari.html
http://www.flickr.com/photos/andre_decourt/2341498815/
Youtube - Piscina do Imperial
Veja também Condomínio Imperial - http://www.guimaguinhas.prosaeverso.net/blog.php?idb=37428