Guimagüinhas
Memórias familiares e de minha terra natal
Textos
Ilustração: Guima e Neuzinha, no casamento de Luciano e Nilza (final dos anos 1950)
1253689.pngRECORDAÇÕES DE AGUINHAS (1) -
A bela daminha e Índice da Série
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SUMÁRIO
 
     - Apresentação
     - A bela daminha
     - Vocabulário de Aguinhas
     - Índice da Série
     - Livro Menino-Serelepe

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Apresentação

Este post A bela daminha inicia a Série RECORDAÇÕES DE AGUINHAS, cujo índice vai abaixo.

Trata-se de narrativa de minha infância, quando morávamos na Vila Nova, em que fui levar as alianças (ao lado da bela daminha, a primeira paixão) do casamento de Nilza e Luciano, nossos vizinhos.

A história se deu assim:
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A bela daminha
 
Foi também a fé da minha avó que me botou numa enrascada, que acabou tendo um final muito feliz. Mãe falou: — Ocê vai levar aliança na igreja matriz. — Levá liança? Quéqueisso? Mãe explicou que vó Cema tinha ido tirar novena na igrejinha de São Benedito e lá tinha conversado com dona Ritinha mais seu João da Mariaça e que eu mais a Vilminha íamos levar a aliança da Nilza mais o Luciano. E que o casamento era luxuoso, era na matriz, que ela não tinha roupa, que o sapato dela era do tempo do onça, que eu não tinha roupa, que eu nunca tinha usado sapato bom, só as alpercatas chora-melado da venda do Totti e os tranchans da fábrica do Zé Cândido, e ficou lá cramando, que ela se desesperava com tudo.
 
Mãe, no entanto, tinha razão de ficar preocupada e insofrida; primeiro, porque gente pobre, diante de uma situação dessas, reage assim mesmo; segundo, porque não era qualquer moça da Vila Nova que podia se casar na matriz. E se tratava de casório de alto bordo, o mais falado naqueles tempos pelas nossas bandas. O noivo, povo dizia, é um bom partido: bonito, elegante, bem empregado, funcionário fichado no Hotel América. Nilza, a noiva, é distinta, de família e é a moça mais linda e mais pretendida do bairro. E todos corriam com os preparativos do casamento. Menos com a casa, que já havia sido construída no fundo da horta do João da Mariaça, pai da noiva. Como esse era vizinho do tio Messias, olhinhos atentos por entre as frinchas da cerca, a turma pôde acompanhar a obra e dar notícia direitinho do andar da construção. “É uma casa grande e vai ser a melhor aqui da Vila Nova. Depois da hora, quando sai do hotel, Luciano trabalha na obra até de noite, com uma lamparina em punho”, os meninos reportaram. “O chato é que com isso não dá pra pular na areia, nem derrubar tijolos, nem brincar de pique-esconde pelos cômodos da casa”, a cambada andou protestando pelos seus “direitos”.
 
Mas quanto a levar a aliança, ainda mais com a Vilminha, o Guima continuava irredutível: — Vilminha? Mas essa menina é intojada, nem brinca com os meninos da Rua do Meio! Ah, não. Eu num , não. Pode botar outro, que eu num levar aliança com a Vilminha não!
 
Mas mãe não deu moleza e pai se esforçou e providenciou tudo direitinho. Cabelo à príncipe danilo — que isso era de lei. Terninho preto cortado pelo Ico Alfaiate. Sapato Vulcabrás, que o Hermínio Viola, pai do Antônio Maria, meu futuro colega, vendeu fiado. Camisa branca de manga comprida que a vó Margarida, aproveitando uma que ganhara de um veranista do Hotel Central, recortou, costurou na medida e engomou pra mim. Só não gostei da gravatinha borboleta: — Ah, isso eu num vou , não! — Tem que pôr, menino. Se arruma direitinho que a Vilminha um chiquê só! E era verdade. Quando vi a Vilminha naquela lindeza, na última moda, num vestido que parecia o da noiva, só que menorzinho e muito mais bonito, sangue subiu pra cara, esfogueei, gaguejei, ensaiei, a palavra enrolou, enrolou, mas eu disse: — O-i-i..., Vil-mi-nha... — Oi, ela respondeu com um sorriso. “Pronto, respirei fundo, e pensei cá comigo, agora já namorando ela”. E fiz tudo direitinho na Igreja, até porque eu já tava ali sonhando que se tratava era mesmo do meu casamento com a Vilminha. (Pato, marreco, sabiá, nóis vai casá, nóis vai casá...)

 
A partir disso, Vilminha caiu no gosto da gente e logo se enturmou. Participava das brincadeiras, mas não das traquinagens e assim mesmo quando tinha meninas de mistura, que a mãe dela também era fogo: — Filha única, Neli. É muito inocente, tenho de ficar de olho. Na companhia de menina tão formosa, viajada e bem-criada, as brincadeiras passaram a ser outras, destoando das que imperavam na Rua do Meio.
 
E aí — era só o que faltava! — nós os meninos, acostumados a brincar de polícia-e-ladrão, a pular carniça, a bater pique, a andar na enxurrada, a saltar pelos trilhos da linha férrea, a bater bola de meia, a jogar bete — e a exclamar dizedelas marmotas do tipo A vaca amarela cagou na panela... Quem cochicha o rabo espicha... Zé pequeté tira bicho do pé... A vaca Vitória deu um peido e acabou a história... e outras destampices sem pé nem cabeça —, fomos brincar de maré, de cabra-cega, de passar anel, de pular corda, de desfolhar malmequer, de bulir em dormideira (Dorme, dorme dormideira, que amanhã é segunda-feira...), de rodar de roda (Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar...), de tirar cantigas (A moda da carranquinha é uma moda estrangulada...), que essas a educada menina sabia cada uma! E assim foi que Vilminha se apossou do meu coração, como todo primeiro amor fica definitivamente na gente. (A bela rosa adormeceu, adormeceu... Aí chegou um lindo rei, lindo rei...)
 
E vó Cema quando me via de olhinhos brilhantes, rindo sozinho, bulia: — Viu passarinho verde? Mas, diferentemente da cantiga, um belo dia, Vilminha e seus pais se foram de Aguinhas — e acabou-se o que era doce! — e ninguém jamais teve notícias deles.
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Vocabulário de Aguinhas

Cramar: Corruptela de reclamar
Chora-melado: Antiga alpercata de corda e lona 
Destampice: Coisa absurda, despropósito
Dizedela: Dito ou sentença popular
Do tempo do onça: Muito antigo, de antigamente
Dormideira: Sensitiva, cujas folhas se murcham após uma batida..
Insofrida: Impaciente; pouco paciente para sofrer
Intojada: Corruptela de entojada: enjoada, metida
Marmota: Gente (ou coisa) boba, feia, sem graça
Príncipe danilo [corte a]: Tipo de corte de cabelo usado nos anos 50 e 60, inspirado no estilo de cabelo do centromédio Danilo Alvim (3/12/20), o Príncipe, famoso jogador do América (RJ)
Sapato Vulcabrás: Sapato popular, de solado de borracha
Tranchan: sapato artesanal, feito por sapateiros de Aguinhas
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Índice da Série

1. O trem de Aguinhas
2. Aprendiz de "farmaceiro"
3. Desfile de Sete de Setembro
4. Festas de igreja
5. A bela daminha
6. Viagens de trem
7. A lourinha do circo
8. As cantigas de minha mãe
9. Festa no João Bráulio
10. Namoricos de infância
11. Aula de Ciências no Grupo João Bráulio

12. Professora Maria Rita e a Redação Nota 10
13. O mais triste dia da vida dos pequenos botafoguenses
14. Jogo de bola
15. Menino mordido de serelepe
16. Dona Guilhermina, do Coleginho
17. Por que Minas não tem mar?
18. Uma vida na farmácia
19. O porquê do menino-serelepe

  Menino-Serelepe

 
(*) Esta narrativa faz parte do livro Menino-Serelepe - Um antigo menino levado contando vantagem, uma ficção baseada em fatos reais da vida do autor, numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, nos anos 1960.

O livro é de autoria de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a série MEMÓRIAS DE ÁGUINHAS. Veja acima o tópico Livros à Venda.
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Enviado por Guimaguinhas em 09/03/2013
Alterado em 12/02/2020
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