Guimagüinhas
Memórias familiares e de minha terra natal
Textos
Dona Catarina da farmácia
Para Dona Catarina Bacha e todos os corações que
acolheram um menino levado da Vila Nova.

Como já contei em o Menino-Serelepe e também aqui neste espaço (1), meu pais deixaram a Vila Nova/Pasto do Fubá e foram morar na cidade. Isso se deu em 1962, e eu tinha 8 para 9 anos. Nos mudamos para parte de baixo da casa da Dona Catarina Bacha, na esquina da Rua Tiradentes com Fabiano Pereira Krauss, em frente à Igreja Protestante.

E assim o menino-serelepe narrou:
 
O convite muito alegrou a família, pois íamos deixar a casa velha do Pasto do Fubá pra morar no centro de Aguinhas, em casa bem localizada, perto de tudo e bem coladinha ao Parque das Águas, das preciosas águas virtuosas da minha terra. E eu ia ter banheiro de verdade, azulejado, com vaso sanitário e chuveiro elétrico, coisas que não havia na Vila Nova e no Pasto do Fubá. Só isso me largava a sensação de que subiria um dedo na escala social. (Desliga logo esse chuveiro, que a gente num é sócio da Cemig! Dá três pulinhos, antes de enxugar, pra economizar toalha!)

E prosseguiu, dizendo que, na nova casa,
 
Me liguei muito aos filhos da Dona Catarina, principalmente à Eunice e ao Evandro, que regulavam comigo em idade. Isso me deu oportunidade de conhecer e frequentar uma casa de gente abastada, de classe superior à minha, de modos educados, que habitavam um imóvel amplo, cheio de quartos, com armários embutidos, móveis finos, sala de jantar, camas de pés torneados, jogos de louças, talheres, múltiplas alfaias, cristaleira espelhada, estereofono de móvel, copa, lavanderia, despensa, geladeira Kelvinator e enciclopédias e livros na estante — uma bíblia enorme, de capa de couro, o Tesouro da Juventude, contos ilustrados de Andersen, Grimm e Swift, a obra de
Monteiro Lobato.

E, no tocante à relação com essa família, anotou o menino-serelepe:
 
(...) eu sempre soube da minha condição e do meu lugar, que pai e mãe nunca me deixaram esquecer disso e viviam me dizendo comporte-se na casa da patroa, não seja nem entrão nem muito de liberdades. Mas eles de mim nunca fizeram pouco caso e, fosse no que fosse, me tratavam com distinção, e nós, as crianças, tínhamos ampla liberdade de entrar e sair, tanto na casa de baixo quanto na casa de cima, a qualquer hora e sem bater. Gente de sociedade, uma família de posses, bem formada e que não era luxenta, nem cerimoniosa ou de enjoamentos. E sem traquejo social, meio pejado, vez por outra, me sentava à mesa, me engasgalhando com a louça-garfo-faca-comida na hora de comer especialidades sírias feitas pela Dona Catarina. E, assim, fui adquirindo novos hábitos, desaprendendo as caipiragens, deixando os acanhamentos de maneiras e, pouco a pouco, agindo com desembaraço. Guardo hoje uma lembrança terna desse tempo e dessa gente.
Depois que lancei o livro Menino-Serelepe, tive oportunidade de conversar sobre esse tempo com Evandro e Eunice, e eu, que escrevera o livro somente com base em minhas recordações, pude conferir com eles diversas passagens de nossa infância, naqueles anos 1960. E era isso mesmo: entrávamos e saíamos da casa de baixo e da casa cima, a qualquer hora do dia ou da noite, como se fosse uma só casa!

De outra parte, meu pai, penso eu, de alguma sorte, representava uma figura paterna para Evandro e Eunice (os mais jovens), visto que seu Antônio Bacha, marido de Dona Catarina, falecera deixando esses dois muito crianças ainda. E havia ainda um outro lado sentimental nessa questão: seu Antônio falecera em Cambuquira, na filial da Farmácia Santo Antônio lá existente, de um ataque cardíaco, nos braços de meu pai...

Mas o que quero consignar aqui é que com a mesma severidade e carinho com que tratava seus filhos, Dona Catarina também a mim me tratava. Brava e carinhosa! Pode ser bem esta a definição para uma grande mulher que, viúva ainda muito jovem, tocou a farmácia em sociedade com Dona Beni Bacha e sozinha criou, educou e encaminhou os cinco filhos que teve.

E está anotado em o Menino-Serelepe um dos muitos puxões de orelha que eu e Evandro levamos. Como o seguinte, que se deu quando brincávamos de espingardinha de milho:

 
Sempre tinha reclamação e, quando isso ocorria, Dona Catarina gritava: menino, passa aqui! E botava a dupla de espingardeiros pra correr, confiscava arma e munição e pinchava no lixo.

 
Dona Catarina e um dos netos. 

Quando nasceram meus dois primeiros filhos, eu ainda morava nesta casa da Dona Catarina, e ela cuidou deles, em suas primeiras semanas, como se fossem seus netos. Dava banho, curava umbigo, passeava com eles. E também ajudou muito a Celeste, durante os primeiros dias de amamentação, preparando e aplicando-lhe toalhas quentes sobre os seios, então muito inflamados em razão de uma mastite.

Durante a fase da grave doença que levou meu pai, com minha mãe muito nervosa e sem expediente, Dona Catarina era quem preparava a comida do rígido regime que ele teve de seguir no último ano que passou entre nós. Um caldo leve e nutritivo, que era só o que ele conseguia engulir.

Nos últimos anos, ainda na farmácia, gostava de dizer que eu tinha sido também "um seu filho" e dizia para os meus filhos que se "considerava sua vó", visto que cuidara deles ainda bebês.

Nos últimos anos de sua vida, sua memória, por vezes, lhe fugia, mas ainda assim, quando nos víamos, gostava de repetir essas pequenas lembranças tão preciosas para mim quanto para ela. Em 2010, fui levar-lhe de presente o livro Menino-Serelepe, e Carmelina foi testemunha de que ela abraçou-me, com olhos úmidos, e disse - Êhe, Guima! Cê foi arteiro, menino! Subia e descia correndo essas escadas e quase deixava sua mãe louca!

Quando faleceu, eu só soube no dia seguinte, às 11 horas da manhã, e, morando em Belo Horizonte, não pude comparecer para a despedida. Orei, então, por ela e por seus filhos, e a tenho conservado respeitosamente em minha memória e em minhas preces, grato por esses ricos anos de minha vida.

  
Anos 1960: Guima, estudante do ginásio, na porta da casa
(1) http://www.guimaguinhas.prosaeverso.net/blog.php?idb=37645
Catarina Monti Bacha nasceu em Pedralva, MG, 22/03/1924. Casada com Antônio Bacha, ficou viúva aos 31 anos. Faleceu em 06/03/2011, aos 86 anos. Teve 5 filhos.
 

(*) O livro Menino-Serelepe - Um antigo menino levado contando vantagem trata-se de uma ficção baseada em fatos reais da vida do autor, numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, nos anos 1960.
O livro é de autoria de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a série MEMÓRIAS DE ÁGUINHAS. Veja acima o tópico Livros à Venda.


 
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Enviado por Guimaguinhas em 19/08/2013
Alterado em 14/05/2019
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