Guimagüinhas
Memórias familiares e de minha terra natal
Textos
MEMÓRIAS DO JOÃO BRÁULIO
No Grupo João Bráulio
SUMÁRIO
Para dona Marcela, que me ensinou a Língua Pátria na Cartilha da Lili.
Para dona Carlota, pelas aulas de aritmética.
Apresentação
No meu livro de memórias (Menino-Serelepe), narrei minha passagem pelo grupo João Bráulio, ocorrida no início dos anos 1960.
Abaixo, conto como se deu minha chegada para o primeiro dia de aula com a professora Marcela Krauss.
Confira.
Texto
Antes de completar sete anos, tive de aprender o be-a-bá e copiar o meu nome pra poder entrar na escola. Pai trazia doce de leite do Gonelli, mas só dava se visse a lição pronta. Assim, quando me matricularam, já sabia essas primeiras letras.
Grupo João Bráulio, primeiro dia de aula, foi mãe que me levou pela mão. Bicho do mato, entocado na Vila Nova, pouco ia à cidade. Eu era o único menino de mãos dadas com a mãe. Todos dentro da classe e eu de fora, com medo de entrar.
— Entra, menino, mãe apertava meu braço e me empurrava. Mas eu não era de ceder com qualquer dois arrancos.
— Num vô, mãe. Já disse mil vezes, num vô! Mãe empurra, eu seguro, mãe torna a empurrar, eu firmo bem o pé.
— Que é isso, garoto bonito, não quer entrar? Aprender a ler, contar, escrever? — me disse por trás uma voz meiga de menina-moça. Voltei e vi, pela primeira vez, dona Marcela.
Marcela Krauss—“Uma menina, pensei, professora? Será se é isso memo?”
— Como é o nome dele, ela perguntou pra mãe.
— Guimarães... Toninho... Antônio..., mãe falou tudo junto.
— Ah, muito bem, como você gosta de ser chamado, perguntou pra mim.
— Guimarães, respondi, que era um nome mais cheio, mais pomposo, causa que Toninho era o modo que todas as crianças e primos me chamavam e não parecia nome a ser dito pra professora. Tomou-me pelas mãos e eu fui o último aluno a entrar em sala de aula. Ela me conduziu até perto de sua mesa e gritou pra turma:
— Crianças, atenção! Atenção, crianças! A bagunça e o barulho foram cedendo. E ela disse:
— Quero apresentar a vocês um coleguinha. Seu nome é Guimarães. Ele acaba de chegar, tratem ele bem.
E eu que ‘tava morrendo de medo de entrar por pouco não desabei tendo de enfrentar a turma assim, de supetão, pela primeira vez e todos de uma vez só. E torcendo as mãos, tossindo no sem graça, fui conferindo a classe sentada de dois em dois em velhas carteiras: era Rubinelson, era Heloísa Barros, era Dito, era Aluísio, era Carlinhos, era Antônio Maria, era Silvinho, era Rubens e sua irmã, a Emerentina, era o Felpudo (sempre atacado dos ventos), era um turmão danado...
Duas semanas depois, dona Marcela inspecionava a fila de alunos, escabichando cabelos, dentes, unhas, orelhas, bolsa, cadernos, livros, roupas, sapatos. Parou diante de mim, examinou minha mão direita e disse
— Guimarães, que calos mais sujos são esses?
— Bolinha de gude, respondi com firmeza, orgulhoso dos nós terrentos no dorso da mão.
Depois olhou para os meus pés e falou:
— Menino, estes são os sapatos novos com que você veio no primeiro dia de aula?!
— Sim, respondi, acanhado do trancham sujo, estrompado e em petição de miséria: furado no bico, saltos desbastados dos lados, sola já quase toda gasta.
— Mas, menino, como você conseguiu isso? Você vem chutando paralelepípedos da Vila Nova até o Grupo?
“Paralelepípedos não, pensei cá comigo, mas tudo o resto: pedras, tampinhas, bagaço de laranja, casca de banana... E, claro, bola na Rua de Cima, bola na Rua de Baixo, bola no campinho do chafariz, bola no recreio, bola depois da aula, bola, bola, bola...”
Formatura Grupo João Bráulio (1967). Na foto, entre outros (2a. fila): Silvinho, Geraldo, José Elias, Dito, Marcos, Guima.
(1a. fila): Rubens Nélson, Zé Luiz, Tomás, Alexandre.
Diretora, professoras e outros funcionários do Grupo João Bráulio Júnior.
Na foto, entre outros, Dona Olga, Dona Maria José, Dona Alzira...
Há professoras - e há mestras inesquecíveis
No dia 31 de agosto de 2018, MARCELA KRAUSS, minha primeira e inesquecível mestra (e de uma geração de lambarienses), completou 78 anos.
Parabéns, minha professora e mestra querida!
Vocabulário de AguinhasEscabichar: Examinar com cuidado, atentamente.
Petição de miséria: Em estado deplorável, miserável.
Terrentos: da cor da terra
Trancham: sapato velho e estragado
Referências
Fonte foto professoras: Lambari em Textos e Fotos/Facebook
Série JOÃO BRÁULIO
Sobre o João Bráulio, veja também estes textos:
- Pelotão de Saúde Oswaldo Cruz (aqui)
- No Grupo João Bráulio (aqui)
- Desfile de Sete de Setembro (aqui)
- Festa no João Bráulio (aqui)
- Aula de Ciências no João Bráulio (aqui)
- O Grupo João Bráulio em 1918 (aqui)
- Uma aula prática de Ciências (aqui)
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(*) Este trecho da narrativa No Grupo João Bráulio faz parte do livro Menino-Serelepe - Um antigo menino levado contando vantagem, uma ficção baseada em fatos reais da vida do autor, numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, nos anos 1960.
O livro é de autoria de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a série MEMÓRIAS DE ÁGUINHAS. Veja aqui: https://guimaguinhas.prosaeverso.net/livros.php#2735
Guimaguinhas
Enviado por Guimaguinhas em 30/04/2013
Alterado em 13/12/2024