Ilustração: Crianças "andando de latinha"
Introdução
No meu livro de memórias — MENINO-SERELEPE* — deixei consignadas inúmeras brincadeiras (e algumas "artes cabeludas") de minha infância, algumas delas que, segundo me parece, só ocorrem/ocorreram aqui pelo Sul de Minas.
Já postei aqui no GUIMAGUINHAS algumas dessas brincadeiras, quais sejam:
- Traquinagens na linha do trem (aqui)
- A bela daminha (aqui)
- Antigas brincadeiras de crianças (aqui)
- Dona Guilhermina, do Coleginho (aqui)
- Brincando de construção (aqui)
- O casarão do Pai Véio e os trolinhos de cabo de vassoura (aqui)
- Outras brincadeiras e o Hotel Imperial (aqui)
- Jogo de bola (aqui)
- Clélia, minha tia brincalhona (aqui)
Agora, vou recordar brincadeiras simples e ingênuas de minha criancice, que narrei no Capítulo IV - Brincadeiras de menino criado preso, do livro acima citado.
Contextualizando, esclareço que, tendo sido filho único e sendo minha mãe extremamente nervosa, ela não me deixava quase sair do quintal da nossa casa. Assim, me virava sozinho ou com os primos que eram nossos vizinhos, nos anos 1950/60, no bairro da Vila Nova.
Antes, veja este texto: A Vila Nova do meu tempo (aqui)
Vamos lá.
Meus primos Mingo, Chica e Cida, e nossos primos, filhos de Estela Bruno, na Vila Nova dos anos 1950. Época de pobreza: as crianças todas descalças
Brincadeiras de menino criado preso
Esta é uma lembrança dos primos e primas com quem fui criado,
que me ajudaram a superar a ausência de irmãos e a
amenizar a extremada vigilância de minha mãe.
— Quéque eu vou fazer, então, mãe?...
— Cê num é um menino sabido?... Pois, dá um jeito.
“Menino sabido! menino sabido... Sou nada. Sei um tiquinho das coisas porque tenho de ir descobrindo um jeito de viver e de brincar. Só isso. Pra mãe, é tudo num pode, num pode. Só isso que ela fala, o dia inteiro. Brincar?... Brincar?... Brincar preso, só no terreiro, que adianta? Isso não é brincar.
Aspecto da rua no bairro Vila Nova, onde eu morava
Arranjo coisa pra fazer na horta e ela grita: sai de perto do formigueiro, num põe a mão em formiga que seu avô pôs formicida na correição! Isso já faz muito mais de mês e até hoje eu não posso brincar direito nem na horta. Vou pro lado do abacateiro, e lá vem: nem pensar em subir aí, menino. Vou correr com o Cavaco: cê vai cair ou dar um talho no pé! Para com essa correria... Vou andar de latinha: cê vai virar o pé, menino! Será se Miguel, Graça, Dinho, Cida, será se eles vêm hoje? Porque brincar de turma é mais gostoso...
Brincar sozinho eu já tô cheio! Já cansei de fazer urupuca de taquara, de pôr visgo pra caçar canarinho, de ficar vendo os fiotinhos da sabiá, de espantar pinhé do terreiro, de mijar em formigueiro, de pôr vaquinha em caixa de fósforo, de amarrar lagartixa pro rabo, de fazer bicho de chuchu e palito, de ficar fazendo coleção de tatuzinho, de olhar figuras nas nuvens, de fazer carrocinha de besouro, de tacar lança em abóbora, de correr de cavalinho de pau de vassoura, de jogar sal em lesma, de rodar pião com chicote, de pegar os pintinhos da galinha choca, de ficar lavando minhoca no tanque...
Será se eles vêm? Vou ficar olhando do alpendre, se num tiver vindo, peço pra Maria Chupa Dedo levar recado pra mim, que ela num sai da rua, por causa que a mãe dela num guenta vê ela ficar chupando dedo, bico, ranho, ponta das trança, tudo junto. E se a tia Elisa falar não? Acho que não, ela vai deixar. Lá já tem muita criança pra ela tomar conta. Ela vai deixar, sim, tomara.
Se a primaiada vem, aí sim, vai ter brincadeira das grande, das boa... Qual será? Montar monjolinho já foi... Pique-esconde só é bom de noite... Marido-muié quando só tem prima com primo e irmão com irmã vó já explicou de que não deve... (Gozada, a vó. Quando a gente pergunta: Por que, então, o tio Mário com a Ivone pode namorar? Ela responde: larga de sê especula, causa que isso é coisa de gente grande. Ora, a gente fala, a Ivone não é filha da Estelona, que é filha da tia Rosa, que é filha da Chica Gorda, que é sua mãe, vó? Aí ela fica quieta e não fala mais nada. Aha! Eu pego ela. Porque desse negócio de família, de quem é parente de quem, eu já entendo... De mais coisa, eu num sei muito direito não, mas fico imaginano...)
Chicotinho-queimado? Ah, não, já brincamo muito disso!... Descer o barranco da linha férrea de velocípede num vai poder, causa que quebrou a roda e ele ficou todo espandongado, de tanta gente que subiu na garupa... Fazer estradinha e brincar de carrinho e trator de carretel num tem jeito: pai inda não trouxe gominha que prometeu...
Fazer comidinha agora a mãe tem medo causa de que da última vez pegou fogo no porão, e tamém é só as menina que faz tudo e os menino tem que ficar esperando, esperando... Fazendinha é bom, mas não dá pra tirar mais mandacaru, modo de fazer as criação, que a dona Leontina cramô com a vó que nós derrubamo meia cerca dela... Furar açude lambreca tudo e aí quem briga é a tia Elisa, que tem de dar banho de torneira e caco de telha na criançada...
Jogar finco, as meninas não sabe e fica com cara de quem comeu e não gostou... Bolinha de gude o pai pôs tudo no forro, causa que foram linguarar pra ele que eu fugi da mãe pra jogar às deva com os moleques grandes da Rua de Cima e isso até ele já falou que não pode... Deixa pensar direito...”
Vocabulário de Aguinhas
Arte cabeluda: Diz-se de travessura ou traquinice de crianças, quando muito atrevidas e/ou perigosas.
Cavaco: Nome de um cachorrinho perdigueiro, pertencente ao meu tio João, que ficou uns tempos em nossa casa.
Correição: Época de aparecimento ou proliferação de formigas ou outros insetos
Talho: corte
Urupuca: Arapuca, armadilha para prender pássaros
Visgo: Resina vegetal com que se prende pássaros].
Pinhé: espécie de gavião
Galinha choca: Galinha que acabou de chocar pintinhos.
Marido-muié: Casal de crianças que fingem ser casados, imitando seus jeitos, modos e expressões.
Espandongado: Estragado, rebentado, quebrado, esfrangalhado.
Lambrecar: Sujar(-se) de barro ou lama.
Linguarar: Contar, fazendo fofoca.
Às deva: Jogo valendo
Referências
http://portaldoprofessor.mec.gov.br/
(*) Menino-Serelepe - Um antigo menino levado contando vantagem é um livro de memórias de Antônio Lobo Guimarães, pseudônimo com que Antônio Carlos Guimarães (Guima, de Aguinhas) assina a coletânea HISTÓRIAS DE ÁGUINHAS.
O livro está à venda naUICLAP : https://loja.uiclap.com/titulo/ua14191/